Novo conto - Mil Lágrimas

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Novos contos.
Vários novos.

Esse feito hoje, baseado em relatos e uma bela aula de Fenomenologia.

Divirtam-se

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Mil lágrimas

- Onde eu sento?

- Onde você achar melhor – Respondi

- Qualquer lugar?

- Qualquer um.

Sentou na poltrona. Sentei-me a sua frente. Silencio.

- Então... eu vim aqui porquê estou em crise.

- Crise? Que crise?

- Eu não sei mais quem eu sou; não sei mais o que eu quero; não sei quem eu amo; não sei porque eu faço o que faço; não sei porque eu sempre tento agradar os outros; não sei o que eu quero me tornar; Não sei porque a opinião dos outros acaba sendo tão importante para mim...

Seu olhar estava cabisbaixo. Olhava vagamente o chão, como se procurando algo no tapete, mas algo que não queria encontrar.

- Mas o que você sabe, então?

- Sei que não sei nada.

O discurso estava longe de ser socrático. Quando se está pronto, se fala. Mais uma vez o silêncio.
- Eu... eu sei que carrego coisas demais.

- Que coisas?

- Coisas dos outros. Problemas, idéias, soluções. Tomo as dores do mundo como minhas, mas fica tudo tão pesado... Eu ouço a todos, e quero agradar a todos. Saio todo fim-de-semana, mas me sinto tão só. Gosto de imaginar que possuo vários amigos. Vários. São tantas tribos que eu não tenho mais tempo. Creio que digo isso várias vezes para acreditar que isso seja verdade.

- E onde entra você mesma na história?

- No fundo, eu não sei. Sorrio, assim pensam que eu sou feliz. Mas as vezes eu choro em público também.

- Esse choro seria de fato você chorando ou é parte da máscara que você mesma veste?

- Sou eu... quer dizer... no fundo eu sei que eu gosto mesmo de atenção. Quando eu estou melancólica sempre me dão um pouco mais de atenção.

- Mas assim o mundo fica pesado demais! Percebe o conflito entre quem você é, quem você quer ser e o desejo do mundo sobre quem você deveria ser?

- Sei... Mas eu não consigo negar algo. Eu simplesmente ajudo. Quando eu percebo já estou carregando os problemas de todo mundo. Sempre que perguntam ‘tudo bem?’ eu sempre respondo no afirmativo. Falo demais o que penso, e não o que sinto. Ahhh! Isso me faz implodir, me deprime. Mas eu não consigo pedir ajuda. Não consigo me perceber. Sempre repito os mesmos erros, mantenho aqueles que me fazem mal perto demais. No fundo eu quero que eles me amem.

-Quanto medo de abandono, não?

-Claro! Olhe para mim. Sou mediana. Não faço nada que os outros não façam. Não sou excelente em nada! Detesto cada momento em que eu erro, e detesto mais ainda quando repito o erro. Sabe do que eu gosto? Gosto que me digam que me amam. Eu sei que muitos mentem. Sei que muitos nem me conhecem a ponto de conseguirem afirmar isso, mas continuam dizendo, e eu gosto. Gosto de acreditar em minhas próprias mentiras. Gosto de dizer que amo os outros para que eles me amem em troca. Eu ODEIO quando as pessoas se divertem sem mim. Como assim as pessoas passam as melhores férias de suas vidas quando eles nem me viram nestas férias; Detesto imaginar que todos têm pessoas próximas e eu sou excluída; detesto imaginar que as minhas amigas são falsas e que mudam de ‘melhor amiga’ toda semana!

- Você também faz isso? – interrompi.

- Faço! – gritou – e odeio isso também. Sabe o que eu adoro também? Pessoas que concordem comigo. Pessoas que vão contra as minhas idéias ou me falam que eu estou errada me irritam, principalmente quando estão certas. E sabe o que eu faço? Vou comentar com alguém que eu sei que me dará razão. Mantenho minha idéia e ainda desprezo a do outro.

Ela começou a chorar. Esse choque com o eu interior machuca. Vale a pena, mas ainda assim, dói no primeiro contato. Anos a fio sendo qualquer coisa menos quem se é cria uma barreira que machuca as mãos ao atravessá-la. O difícil é não reconstruir uma outra barreira depois desse contato.

- Fique de pé, por favor – pedi.

Ela enxuga as lágrimas e se levanta. Eu começo a entregá-la todos os objetos que existem em minha sala. Cadernos, livros, até vasos. Ela não tem mais como segurar. Deve estar bem pesado. Não reclama. Sem expressar sofrimento, ela suporta todo o peso. Pego meu lixo, cheio de papeis e coloco sobre seus braços cheios de objetos. Observo. Cerca de dez segundos depois ela cai de joelhos e se põe a chorar. O lixo cai no chão e os papeis inundam a sala. Ela soluça em meio a lágrimas.

- Porque eu sempre faço isso? Porque eu sempre acho q eu deveria carregar todo esse peso? Porque eu não peço nem aceito ajuda?

- Você quer que eu ajude? – perguntei

Seus olhos brilharam. Refreio meus impulsos de retirar todos os objetos de suas costas e braços. Aquele encontro sagrado dela com ela mesma era algo que deveria ser descoberto a cada instante, não simplesmente aliviado por mim.

- Eu... eu quero – disse ela, com o olhar levantado como quem observa uma divindade.
- E como você quer que eu ajude?

- Você poderia pegar o lixo para mim – disse ela com uma voz fraca e pausada.

Dispus-me a pegar os papeis no chão e colocá-los na lixeira. Ela, aos poucos colocava os livros que segurava em cima da mesa. Ao se perceber um pouco mais aliviada e com as mãos livres, apesar de carregar um imenso peso nos ombros derivados de bolsas, mochilas e pastas, se dirigiu a mim e começou a recolher o lixo também.

- O que você está fazendo? – indaguei

- Estou te ajudando a recolher o lixo.

- Então pare. - repreendi -Não percebeu o imenso peso em suas costas? Será que um pequeno instante de alívio já a induz a novamente se sacrificar pelo outro? Sabe o que você está fazendo? Está pegando o lixo dos outros. Está com o peso do mundo em suas costas, mas guarda o lixo dos outros, que você me pediu para fazê-lo, apenas para agradar. Algo automático. Se quiser ajuda, deverá me permitir ajudá-la.

Silencio. Choque. Um pouco de agressividade facilita a superação de barreiras. Ela, com um olhar vago, deixa todo o peso de suas costas no chão, engatinha em direção ao centro da sala e deita. De costas para o chão, fecha os olhos e esboça um sorriso. Lágrimas. A cada mil lágrimas sai um milagre, já dizia a música. Aquele olho que tanto havia chorado no escuro despejou sua milésima gota.

- Obrigada.E se manteve deitada, se encontrando e aproveitando casa segundo da viagem durante um bom tempo. Guardei então o lixo, os livros e os objetos que nem lembrava que possuía em meu consultório.

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Eu

  • Um sujeito simples. Composto por vários apostos. Único.
  • Qualquer que seja a sua visão sobre mim não reflete na verdade quem eu sou. Será apenas mais um ponto de vista.

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