- Como foi o seu dia?
- Como um sonho.
- Com cheiro de quê?
- De terra molhada, daquela tarde fria que parece que vai chover, que as plantas dançam e bailam com o vento que vem anunciar a chegada de seu irmão chuva. E o seu?
- Teve cheiro de pão.
- Hum, que delicia! Que pão?
- Não sei, da massa, que sai do forno e lisonjeia a gula.
- E você comeu pão?
- Comi. Frio como a lua, e duro como uma pedra. De tanto comer, dói-me o queixo.
- Quanta agressividade tivestes, não? Não seria mais prudente experimentares primeiro aquilo que acreditas tanto desejar?
- Sabes bem que sou um apaixonado. Minha paixão, esta benção-maldição, me impulsiona a viver com imensa intensidade as coisas. Acreditei que minhas ações me trariam prazer, quando, no fim, a dor acompanhou-me pela maior parte do percurso. Mas conta-me mais do teu dia.
- Voltando para casa, observei a árvore de meu vizinho. Algumas semanas atrás, aquela estrondosa arvore de dezenas de metros foi dilacerada, massacrada e eu, da janela de minha confortável casa, praticamente a podia ouvir gritar. Não podia fazer nada, não sou ninguém, ia ser humilhado por aqueles que a cortavam, a faziam chorar. Deixei ser ela reduzida a um tronco com alguns galhos. Qual foi a minha alegria, hoje, ao ver que por toda a arvore e galhos, plantas com longos caules surgiam, como filhotes que saíram do ventre da mãe e ansiavam por ver o mundo de sua própria forma. Aquele marrom estava mais verde do que nunca. Fez-me pensar. O ressurgimento, as ressignificações. Assumo que lágrimas de alegria caíram de meus olhos. A vida ainda vive.
- Eis que no meu dia eu vi uma flor amarela nascendo, ouvi uma piada engraçada, daquelas internas que só agente entende e gargalha por dentro, andei de mão dada pelas ruas e visitei sebos que cheiram a livros lidos. Houve, também, um encontro.
- Descreve-me mais, quem encontraste?
- Uma velhinha, de passos curtos e sorriso largo.
- De cabelos brancos?
- De cabelos brancos e um olhar profundo.
- E a voz?
- Era suave, cansada de tanto ser usada, mas enérgica por querer, provavelmente, ser usada muito mais. Perguntou-me a hora.
- Que disseste?
- Respondi que era hora de elogiar uma senhora tão simpática. No fim ela nem queria mais saber o que estava impresso em meu relógio.
- Amável. Eu vi um cão perdido na rua. Perdido, rodando em círculos, olhando para cima, talvez percebendo o mundo caótico, talvez desejando uma intervenção, um milagre. Parecia chorar. Partiu-me o coração enquanto mantinha a espiá-lo do ônibus. Há anos eu não pedia nada a qualquer divindade que inexiste. Roguei pelo pequeno cão.
- Antes de vir para cá dei um beijo de boa noite em meus pais.
- Como foi?
- Doce como bala-de-côco.
-Um brinde a isso então.
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As vezes acho que esquecemos de falar o que realmente importa. Um diálogo assim quando se pergunta sobre o dia é fantástico.
Sem números, sem simples ações ou restrições, mas olhares, cheiros, gostos e sensações.
Eu gostei.